5.01.2009

Olhar sobre "Hiroshima Meu Amor"

Análise do Filme Hiroshima Meu Amor


“Hiroshima Meu Amor” (Hiroshima Mon Amour, 1959), longa-metragem de estréia do veterano Alain Resnais, faz um tratado poético e não menos crítico sobre os impactos da segunda guerra mundial e os vários significados atribuídos ao seu trágico desfecho: uma bomba atômica que representou o alívio para a humanidade com o fim do conflito, e ao mesmo tempo, marcou profundamente a história dos habitantes de Hiroshima.

Quatorze anos depois do massacre na cidade japonesa, o filme mostra que ainda é possível existir o amor para os sobreviventes do pós-guerra. Hiroshima, a mesma cidade que outrora fora alvo da bomba atômica e, portanto, símbolo de separação e desunião entre os homens, será, paradoxalmente, o local de encontros e atmosfera romântica do filme de Alain Resnais.

Em parceria com a romancista e roteirista Marguerite Duras, Resnais narra a história de amor entre uma atriz francesa ( interpretada por Emmanuelle Riva) e um arquiteto japonês ( por Eiji Okada), que se encontram e passam uma noite juntos. O cineasta nunca nos contará o nome deles. A atriz está em Hiroshima gravando um filme em favor da paz. Os dois são fruto de um passado de sofrimento. Em 1945, data que marca o fim da guerra, ela está na França e perde, em seus braços, o namorado, um soldado alemão. No mesmo ano, ele luta na guerra e recebe notícias do ataque americano à Hiroshima e da morte de sua família.

Resnais poderia contar desta maneira o filme, entretanto, talvez o argumento social e político pudesse se perder em meio ao drama psicológico dos personagens. Assim, o cineasta opta por não construir uma narrativa nos moldes clássicos. Ele não está interessado em convidar o espectador a embarcar em uma bela história de amor, trazendo uma falsa ilusão de que nada mais aconteceu após o cessar fogo.

Em 1959, o ser humano do pós-guerra está machucado. Ele não celebra o fim do conflito que assolou o mundo, pois o seu recomeço será árduo, principalmente depois de um tenebroso passado de cinzas. Não há mais a crença no amor. Ela deve ser reconstruída e, portanto, Resnais, como artista e representante de seu tempo, dialoga criticamente com este momento delicado que a história oficial se ocupa em omitir.

Em conversas com a romancista Marguerite Duras ainda no processo de construção do roteiro de “Hiroshima Meu Amor”, Resnais apresenta suas intenções em relação ao espectador. Ele quer motivá-lo a pensar criticamente sobre a bomba e seus impactos, construindo uma narrativa sem um comprometimento com a ação dramática e linear, marcada por um desenvolvimento de princípio, meio e fim.

“Falei-lhe pouco dessa noção de personagens que não seriam heróis, que não participariam da ação, mas que seriam testemunhas dela, exatamente aquilo que somos na maioria dos casos diante das catástrofes ou dos grandes problemas. Talvez se consiga melhor assim criar uma sensação de incômodo no espectador”
(PINGAUD, SAMSOM, 1969, P.17)

A partir destas características é possível constatar as preocupações de Resnais em construir um discurso que não conduzisse o espectador a um envolvimento emocional, ou mesmo, à identificação com indivíduos e seus conflitos particulares - sendo estas estratégias e particularidades da narrativa clássica. Para que “Hiroshima Meu Amor” tivesse como premissa básica a ruptura da ilusão, motivando o espectador a participar do filme, no sentido de fazê-lo sentir-se um sujeito histórico-social, ligado às questões de seu tempo, demandaria de Resnais lançar mão de recursos estéticos, optando, assim, por uma narrativa mais distanciada que suscitasse surpresas, perguntas, questionamentos ao espectador, ao estabelecer com ele uma convenção dialética de construção e ruptura da ilusão.

Neste jogo de falsear e mostrar, o próprio espectador tira as suas conclusões ao contemplar a “torrente de imagens” do discurso resnaisiano, construindo o seu final, e ao mesmo tempo, sendo impulsionado a experimentar uma sensação de coletividade e a pensar em um ideal de transformação social.

Assim, Alain Resnais, um homem de espírito moderno, atravessado por ideais de esquerda e marxistas e pelas teorias e reflexões de artistas, como o cineasta russo Serguei Eisenstein e o teatrólogo alemão Bertolt Brecht, propôs experimentações que fizeram de “Hiroshima Meu Amor” um dos filmes mais elogiados pela crítica, na época. Este acontecimento chamará a atenção de jovens cineastas franceses da Nouvelle Vague. O movimento foi iniciado em 1958, um ano antes de “Hiroshima Meu Amor” ganhar as telas francesas.

Influenciados pelo movimento Neo-realista italiano, os jovens cineastas Godard, Truffaut, Rohmer, e outros, propunham a ruptura estética com o cinema comercial, que utilizava por técnica a construção da ilusão através da ação dramática. Eles iriam experimentar uma nova forma de fazer cinema, a partir de um discurso descontínuo, fragmentado, com montagens inesperadas, marcadas muitas vezes por locações externas. Adotariam também o “Cinema do autor”, escrevendo os próprios roteiros.

Apesar de não escrever os próprios roteiros, Resnais foi incorporado à Nouvelle Vague por apresentar em “Hiroshima Meu Amor” muitos dos anseios do movimento. No livro Jean-Luc Godard, os autores Suzanne Liandrat-Guigues e Jean-Louis Leutrat, apontam menções de Godard, um dos expoentes da Nouvelle Vague, em que o cineasta tece elogios ao colega.

“Em 1959, Godard afirma que Resnais é o segundo montador do mundo depois de Eisenstein. ‘Para eles, montar quer dizer organizar cinematograficamente, e dizer, prever dramaticamente, compor musicalmente ou, em outras palavras mais belas: dirigir (...) Resnais inventou o travelling moderno, sua velocidade, sua saída brusca e sua chegada lenta’. Portanto, Godard coloca Resnais nas nuvens”. (GUIGUES, LETRAUT, 1994, P.64)

Tal afirmativa pode soar pretensiosa, quando se trata de comparar qualquer cineasta à altura do gênio Eisenstein. Porém, é inegável a importância e capacidade de Resnais em combinar planos e propor montagens por contraste ou simbólicas, atreladas a um ritmo musical e a um descompasso do tempo real, o que lhe imprimiria uma marca incomparável. Resnais demonstra muita intimidade ao propor surpresas em sua narrativa, porém, sempre muito fundamentadas, de quem sabe o que quer dizer e para quem pretende dizer.

“Meu objetivo é por o espectador num estado tal que oito dias depois, ou mesmo seis meses ou ainda um ano depois, ao se ver colocado diante de um problema, o filme o impeça de trapacear e o obrigue a reagir livremente. Preocupo-me em me dirigir ao espectador em estado crítico. Para conseguir isso, tenho de fazer um cinema que não seja natural”.
(PINGAUD, SAMSOM, 1969, P.170)

Assim, é possível compreender porque em seus filmes há também certo toque de teatralidade a partir da utilização de entonações insólitas, gestos exagerados e uma cronologia esfacelada. Vale lembrar que Resnais era um apaixonado por teatro e chegou a estudar por dois anos arte dramática, mas acabou se afastando para servir o exército.

Desta forma, verificamos um olhar muito peculiar para um cineasta que em todos os seus filmes se manteve fiel à opção estética do distanciamento. A começar pelo primeiro, “Hiroshima Meu Amor”. O prólogo do filme, com duração de quase quinze minutos, já nos apresenta uma profusão de imagens que se agrupam por seu caráter dialético, contrastante, com a intenção de confundir o espectador e gerar questões.

“A ordem segundo a qual as idéias ou as imagens se associam em nosso espírito é raramente cronológica. Pensa-se numa coisa depois numa outra que não tem relação alguma com a precedente, que não é uma sua continuação nem lógica, nem temporal. O verdadeiro realismo consiste em seguir essa ordem” (PINGAUD, SAMSOM, 1969, P.170)

Na primeira imagem de “Hiroshima Meu Amor” é possível assistir a corpos cobertos de uma areia brilhante, que indicam os vestígios da bomba atômica. Não vemos os rostos, somente mãos, braços e costas. Os corpos se acariciam. Neste momento, Resnais evidencia as duas temáticas contrapostas das quais irá tratar durante todo o filme: o amor e a guerra.

Na seqüência, uma lenta fusão e, em mesmo plano, o cineasta nos leva, aos poucos, aos corpos de um casal. Um homem e uma mulher, a pele deles está limpa. Estão juntos em pleno ato sexual. Não conseguimos identificar a expressão facial. Com isto, o cineasta já nos informa de que falamos de todos, da humanidade, e não de um indivíduo. A música acompanha a movimentação do casal, reforçando uma atmosfera erótica, contínua, de ritmos suaves. Os amantes dialogam enquanto se abraçam. A mulher diz ter visto Hiroshima e ele nega a cada afirmativa por ela pronunciada: “Não, você não viu nada”.

Ainda na seqüência do prólogo, aos poucos Resnais nos transporta através de um corte seco e inesperado para um universo objetivo, de fatos que se confundem com as lembranças entrecortadas da memória da mulher. Ela diz ter visto um hospital e nós vemos um hospital. Neste momento, ela assume uma posição de personagem-narradora que se estende até o final do filme. Nesta transição brusca, o diretor começa a nos dar as regras do jogo e a estabelecer um ritmo para o espetáculo de imagens.

Dessas surgem tantas outras imagens na seqüência: um museu, uma exposição de fotos, instalações com objetos, retalhos de vestimentas, nada mais do que resquícios dos efeitos da bomba sobre Hiroshima. Estas imagens são montadas em movimento simultâneo à voz feminina, que transmite ao espectador dados históricos, números, precisão dos fatos. A música contribui para o balé de imagens rápidas, até que nosso tapete é novamente roubado e voltamos ao quarto dos amantes. A atmosfera musical se modifica, somos enternecidos pela melodia. Em questão de segundos, Resnais nos surpreende e somos impulsionados à exatidão, à realidade científica dos fatos, que passa a ganhar fluxos diversos. Um cine-jornal mostra imagens impactantes: crianças deformadas, geradas no útero das mães de Hiroshima. A elas, Resnais combina o texto de Marguerite Duras que evoca belas metáforas como flores exóticas, de uma vitalidade surpreendente. Este jogo de ambigüidades meticulosamente calculado causa estranhamento: o cineasta nos desperta para uma aproximação crítica das mazelas vividas por Hiroshima.

Aos poucos, o clima se acalma. Estas sensações são trazidas pelo casamento de imagens que indicam a passagem do tempo. A personagem-narradora nos remete a uma sensação de que estão cada vez mais distantes as lembranças dos homens em relação ao horror da guerra. A humanidade, paulatinamente, se recupera. Ela diz sobre si mesma que chegara a se iludir de que nunca esqueceria a bomba atômica, assim como as suas tristes recordações de amor. Neste momento as imagens reforçam o fim do ato sexual. Não mais o amor e a guerra se atritam. A ordem é de cessar fogo. A voz feminina diz “como você é bom pra mim”, “você me devora”.

Em outro momento do filme, Resnais evidencia sua opção pela utilização de uma narrativa distanciada que desconstrói qualquer possibilidade de ilusão. O cineasta mostra o reencontro do casal, no set de filmagem, durante a gravação do filme em que a personagem de Emmanuelle Riva atua. De pronto, já se torna evidente a metaliguagem. Resnais evidencia o cinema dentro do cinema.

Nesta cena os amantes estabelecem um diálogo que começa a nos captar novamente para um clima amoroso e poético, quando a personagem de Emanuelle Riva, faz uma menção à bomba, dizendo, através de uma metáfora sutil, que depois da chuva o céu estará em completa escuridão. Vemos então cartazes, em planos fechados, com discursos contra a bomba atômica. Os cartazes se dirigem ao espectador de forma declarada, com afirmações questionadoras sobre o descontrole humano diante dos avanços da tecnologia e da ciência.

A narrativa distanciada se faz presente também na montagem de imagens que remetem às lembranças evocadas pela atriz francesa. Em algumas cenas, Resnais explicita os encontros da personagem com o antigo namorado alemão, morto na guerra. O diretor constrói a seqüência de uma forma clássica e linear. Toda vez que ela e o soldado são mostrados, ouve-se uma música alegre, de andamento ligeiro. Enquanto narra, Resnais mostra as seqüências em concordância com a voz da personagem-narradora. Em outros momentos, o diretor quebra esta estética e convida o espectador a um exercício de imaginação, assim como nas convenções teatrais, em que há a presença de um narrador. Um exemplo é na cena em que a atriz começa a enumerar os locais onde se encontrava às escusas com o amante. Ela cita vários lugares e Resnais não mostra nada e permanece com a câmera em Emmanuelle Riva. Assim que ela conclui a sua narrativa, o diretor apresenta as locações por ela citadas.

Outro momento significativo em que Resnais se utiliza da teatralidade como recurso de estranhamento, se passa em uma mesa de bar. A atriz francesa fala de suas lembranças tristes, chora. Resnais a enquadra sozinha em um único plano. A sequência dura em torno de três minutos. Pela qualidade técnica de Emmanuelle Riva e nenhuma outra imagem que nos roube a ilusão, permanecemos encantados e emocionados, até que o arquiteto japonês lhe dá um tapa no rosto. Todo o bar volta o olhar para o casal. Quando esperamos uma reação agressiva da atriz ou de desespero, vemos o esboço de um sorriso e a catarse dura pouco. Resnais nos devolve novamente à realidade.

Por fim, outro ponto significativo é o final aberto. Não sabemos o destino dos personagens de “Hiroshima Meu Amor”, ilustres desconhecidos. Resnais sugere no final um diálogo em que a atriz e o arquiteto discutem. Entretanto, o diretor não deixa pistas se haverá um desfecho, assim como acontece nos filmes de heróis. Para o cineasta é isso o que realmente importa. Os personagens de Resnais estão em processo. Eles são representantes da humanidade que se encontra em constante evolução. É neste ponto que reside a provocação do artista inquieto. Cada espectador saberá o seu final e construirá a sua história e a do mundo que o cerca.