5.01.2009

"Amores Parisienses" de Resnais


“Amores Parisienses” é um dos mais recentes longas do cineasta veterano Alain Resnais (1922-), que em 2008 completou 60 anos de carreira. Resnais recebeu pelo filme sete prêmios César (nas categorias Melhor Ator, Montagem, Filme, Som, Ator e Atriz Coadjuvante e Melhor Roteiro), além de ser um de seus maiores sucessos de bilheteria.

Em parceria com os roteiristas franceses Jean-Pierre Bacri e Agnés Jaoui, Resnais conta a história de encontros e desencontros entre seis personagens, ambientada em Paris. Um escritor de peças de teatro para rádio, Simon (André Dusollier), ama em segredo uma guia turística, Camille (Agnés Jaoui). Porém, ela está apaixonada pelo charmoso chefe dele, Marc (Lambert Wilson). No entanto, tudo o que este último quer é vender um apartamento para a irmã dela, Odile (Sabine Azéma). A irmã quer comprar o apartamento mesmo com a desaprovação de seu marido, Claude (Pierre Arditi). O insignificante marido não concorda com o inesperado reaparecimento de um amigo de infância de Odile, Claude (Jean-Pierre Bacri) que se mostra nada confiável inicialmente.

Na tradução literal para o português lê-se “Nós conhecemos a música”. Ao contrário do que o nome nos remete, o filme não é um musical ingênuo norte-americano, e sim caminha para a desconstrução deste gênero amplamente difundido nos Estado Unidos dos anos 30.

Mesmo tendo passado por um contexto de guerras, a França e toda a Europa ainda assim receberam influências do estilo musical “fábrica de sonhos” americano. Entretanto, a ilusão e fantasia dos musicais norte-americanos ganharam outro peso e teor crítico nas mãos dos cineastas europeus. Se Jacques Demy transpôs o gênero para um sotaque francês sem sobressaltos em “Os Guarda-Chuvas do Amo” (1964), outros diretores transplantaram o modelo para um contexto europeu, com certos desvios de norma e rota: Ozon recorreu à trama do filme de suspense e mistério em “Oito Mulheres” (2002) e “Lars von Trier” apostou em uma estética diferenciada, como o melodrama naturalista-metafísico em ”Dançando no Escuro” (2000).

Outros foram mais longe na anti-alusão e experimentação formal: Godard fragmenta a continuidade no musical neo-realista -“Uma Mulher é Uma Mulher” (1961), e Straub-Huillet investiu em um musical marxista e materialista-dialético -“Crônica de Anna Magdalena Bach” (1967). Além disso, é impossível não citar as óperas operárias de Straub-Huillet, como “Othon” (1969), “Moses e Aron” (1974), “A Morte de Empédocles” (1986). Da mesma forma “Nós Conhecemos a música” de Resnais participa dessa linhagem, ironizando a fluidez ilusionista com doses de estranhamento e incômodo.

A começar por não trabalhar com os típicos “mocinho e mocinha” que mal se tocam como nos musicais norte-americanos, além de cantarem e sapatearem dando um clima de figuras inatingíveis e “perfeitas”. Nos filmes de Resnais, em especial “Nós Conhecemos a Música”, não há espaço para heróis que “acabam bem”: os personagens do diretor francês expõe seus pensamentos povoados por dramas universais, como a solidão, a desilusão amorosa e a incompreensão. Eles irão se expressar, ora em diálogos comuns, ora cantando. Afinal, a música é fundamental para Resnais.

“Para mim, num filme o texto é muito importante, a imagem é muito importante, a música é muito importante. O essencial é que tudo isso convirja para uma espécie de encontro, de balanço(...) Nunca poderei imaginar um filme sem música” PINGAUD, Bernard e SAMSOM, Pierre. Entrevista com Alain Resnais. Alain Resnais ou Criação no Cinema. 1969, Ed. Documentos Ltda, Pág.135)

Em “Nós Conhecemos a Música”, cada canção ganha na representação dos atores um clima de teatralidade, como se fosse uma opereta. Não é como nos musicais norte-americanos que tudo parece acontecer com fluidez e encantamento. Assim, em “Nós conhecemos a música”, os temas musicais não são utilizados na íntegra e entram como dublagem, o que reforça a artificialidade e amplia o efeito de distanciamento brechtiano. Resnais opta ainda por conservar as gravações originais, muitas delas sucessos antigos, na voz de Edith Piaf, Charles Aznavour, Yves e outros. O cineasta a cada cena ousa mais e lança mão de todas as possibilidades de estranhamento, arriscando colocar atrizes dublando vozes masculinas e vice-versa.

“Meu objetivo é por o espectador num estado tal que oito dias depois, ou mesmo seis meses ou ainda um ano depois, ao se ver colocado diante de um problema, o filme o impeça de trapacear e o obrigue a reagir livremente. Preocupo-me em me dirigir ao espectador em estado crítico. Para conseguir isso, tenho de fazer um cinema que não seja natural”. (PINGAUD, Bernard e SAMSOM, Pierre. Entrevista com Alain Resnais. Alain Resnais ou Criação no Cinema. 1969, Ed. Documentos Ltda, Pág.170)

Assim, é possível compreender porque nos filmes de Resnais há a utilização de entonações insólitas, gestos exagerados e uma cronologia esfacelada. Vale lembrar que o diretor é um apaixonado pelo teatro.

A escolha do roteiro musical em “Nós Conhecemos a Música” é de Bruno Fontaine. Além de um recurso de experimentação antiilusionista que descontrói o jogo de condução linear da narrativa clássica, proporcionando rupturas inesperadas para o espectador, a música assume também a função de comentário. Por exemplo, nos diálogos entre os personagens a música irá contrapor idéias, como é o caso da canção em que o galã Marc, dono de uma corretora de imóveis, interpretado por Lambert Wilson, está ao telefone tentando vender um apartamento para Odile, representada pela atriz Sabine Azéma. Enquanto aguarda a empresária atender a ligação, o vendedor cantarola uma canção em que expressa tédio pela espera. A representação do ator neste momento traz gestos teatrais. Quando a empresária atende, a música é interrompida e o ator falseia mostrando-se confiável e exemplar como se não estivesse incomodado com a demora. Neste instante sua representação retorna para uma gestualidade cotidiana. Este jogo verdade e ilusão é o tempo todo explorado por Resnais. Ao desligar o telefone, o personagem sairá com um colega ao encontro de Odile, para consumar a venda. Enquanto passeiam por uma calçada charmosa de Paris, o galã agora festeja a sua futura venda e canta uma nova música para o colega, que aponta o lado sedutor de Marc. Novamente a representação assume um caráter mais demonstrativo, pouco usual na linguagem cinematográfica.

Em outras composições, a música entrará reforçando uma idéia, e ainda sim, criando um clima antiilusionista. A hora em que o marido de Odile percebe que sua mulher se mostra íntima do amigo de infância Nicolas, sentirá violento ciúme e prefere afastar-se dos dois e observá-los de longe. O ator Pierre Arditi dubla uma música triste e sua atuação ao cantar é transfigurada para uma espécie de representação melodramática, combinada à carga dramática musical. Essa atitude exagerada e pouco natural reforçará o toque de humor e leveza da cena, não deixando o público se envolver.

Há momentos no amor platônico do corretor de imóveis e escritor de peças de teatro para rádio, Simon, que é muitas vezes manifestado pelas canções que o próprio dubla. Ele sempre se afasta e observa a “mocinha às avessas”, Camille, com olhar apaixonado. A partir desta ação, Resnais cria a convenção para o espectador de que toda as vezes que tal situação ocorre, o personagem Simon, interpretado por André Dussollier, irá declarar silenciosamente o seu amor, ao cantar uma música com ar de melancolia e paixão, sem que a guia turística Camille desconfie, afinal ela é namorada de Marc, o chefe do “enamorado”. Desta forma, Resnais não permite nunca que a forma de contar a história torne-se trivial, por mais que a fábula caminhe para esse lugar.
Já a personagem Odile, a empresária, não omite sentimentos, ao contrário do personagem Simon. Tudo o que pensa é explicitamente dividido em diálogos textuais e musicais. Dentre as várias músicas que a atriz dubla, a mais marcante é “Resista, prove que você existe”. Ela pronuncia mais de uma vez durante o filme este pequeno jargão melódico. Em uma das situações, a empresária aconselha o personagem de Jean-Pierre Bacri, Nicolas, a não se render ao fato de ser apenas um motorista e não ter dinheiro para trazer sua mulher e os filhos a Paris. Neste momento, a personagem de Sabine Azéma faz um gesto de luta, erguendo o braço ao cantar a música e evidencia novamente a estética distanciada e teatral proposta por Resnais.

Haverá circunstâncias em que a mesma música será cantada por dois personagens, em momentos diferentes, estabelecendo uma relação entre eles, como é o caso de Nicolas e a sua esposa, Jane, interpretada por Jane Birkin. Ela aparece em curto trecho da trama. Marido e mulher se encontram em uma estação de ônibus e ela diz em uma canção o quanto o ama, mas que terá de partir pela indecisão dele em relação à família. Em outra cena, em que Nicolas está acompanhado pelo corretor de imóveis Simon, e dá conselhos ao mesmo sobre Camille, os dois dublam a mesma música de Jane, esposa do motorista. A gravação, tanto para os dois colegas como para a esposa, é a original cantada por uma voz feminina, recurso que traz grande estranhamento ao espectador. A personagem de Sabine Azéma terá momentos em que dubla vozes masculinas e a estranheza se repete.

Concluindo, é impossível dissociar forma e conteúdo na obra de Resnais. Todas as experimentações estéticas do diretor trazem uma crítica de caráter social e/ou político. O cineasta francês dialoga com as questões de seu tempo. Sua obra não se interessa por conflitos particularizados de heróis da poética, pelos quais o espectador torcerá e se identificará. Mesmo ao contar uma história de amor, nela estarão evidenciadas as relações de poder, o ser humano ligado à história: homens comuns, representantes de um coletivo.

Os personagens de Resnais não passam por grandes obstáculos, a partir de um roteiro bem costurado, que irá levar à manipulação e ao envolvimento da platéia. O que o cineasta pretende é provocar uma aproximação do público, por causas coletivas, a partir da sensação de estranhamento, e assim realizar uma transformação social do homem e do mundo que o cerca, assim como almejava o poeta e teatrólogo alemão Bertolt Brecht em seu fazer teatral.

Sendo o cinema uma ferramenta mais acessível e considerado um dos meios de diversão mais baratos, é de suma relevância hoje revisitarmos portanto, a obra de Resnais e de tantos outros que cultivam esta idéia da arte como instrumento capaz de transformar o ser humano.