5.01.2009

"Fala Comigo como a Chuva"

Análise do espetáculo "Fala Comigo como a Chuva" a partir do conceito de polifonia proposto na tese de doutorado do pesquisador Ernani Maletta.

O espetáculo “Fala Comigo como a Chuva”, texto de Tenesse Williams e direção da mineira Cythia Paulino, traz para a cena elementos discursivos construídos a partir do diálogo polifônico entre signos teatrais como o cenário, a luz, o figurino, entre outros. Eles contribuem para contar a relação entre um casal. Cada elemento colocado em cena sustenta de forma criativa e cuidadosa um diálogo permanente com a interpretação dos atores e o texto do dramaturgo norte-americano.

De imediato é possível perceber o cenário: uma delimitação do palco por um quadrado, que sugere um lugar íntimo, privado, entre quatro paredes. Em volta foram dispostas arquibancadas. O público se encontra em formato arena, podendo contemplar a encenação de três ângulos: frente e laterais direita e esquerda. No espaço da encenação, duas camas de solteiro idênticas, distribuídas uma ao lado da outra, equilibram a cena em mesmo sentido. São feitas de um material duro, que lembra o metal. Em cima de uma das camas, várias revistas e livros velhos. No canto esquerdo da área quadrada, garrafas transparentes, vazias, distintas em tamanho. Ao fundo, um painel colorido com uma pintura abstrata.

Desde o início do espetáculo, enquanto o público vai se assentando nas cadeiras, a estrutura da dramaturgia espacial contribui para que o espectador seja cúmplice da encenação. No centro, ao fundo, entre as duas camas, a atriz Samira Ávila se encontra sentada, em silêncio, e está vestida com uma camisola. Sua cadeira se encontra posicionada lateralmente em relação à platéia do centro. Ela lê um livro mexendo a boca e bebe a água de uma das garrafas presentes em cena. Às vezes alterna as duas ações com a de elevar o olhar atento e fixo ao longe, como se pensasse em algo além das quatro paredes do recinto. Ao fundo, toca uma música francesa.

A música é interrompida para a apresentação do segundo personagem, representado pelo ator Luiz Arthur. Ele está vestido com uma calça bege, sem camisa. Cambaleia, faz gestos e piadas com o seu estado, beija sua mulher e adormece em uma das camas. Parece bêbado. Ao presenciar o cheiro e as atitudes do marido, a personagem de Samira constata a embriaguez do marido e tenta buscar na indiferença e nos livros um refúgio, mas não dura muito e, aos poucos, vai se alterando e passando da tristeza à angústia, do desespero à raiva e do devaneio novamente à tristeza. A representação das várias qualidades de estado da atriz é reforçada pelos momentos em que troca de roupa. Ela coloca e recoloca várias vezes cada peça, com intensidades diferentes, contribuindo para a construção das tensões da cena.

Outro elemento fundamental para a condução dos pontos de tensão cênicos e composição da cena é a água. Ela é responsável por diversas metáforas no espetáculo e simboliza matizes contraditórios do universo feminino como a força e a fragilidade, a passagem do tempo e a a morte como fertilidade, a paz e a fúria.

No início do espetáculo, a atriz bebe a última garrafa com água e dá a impressão de ter esvaziado todas esperando pelo marido. A medida que o clima de conflito entre os dois personagens se estabelece, começa a jorrar uma água fina e continua sobre o painel, como se fosse a representação de um choro eterno. Aos poucos o volume de água aumenta e vai invadindo continuamente a cena, ensopando a roupa da atriz, todo o cenário, as vestes do ator, como se a relação a dois estivesse em naufrágio. Eles brigam e fazem sexo e, de-repente, uma música norte-americana toca ao fundo. Ela é familiar e remete a uma lembrança a dois. Eles começam a dançar. Logo, as ações anteriores se repetem em uma partitura de ações físicas precisa. O casal volta a brigar e fazer sexo, envoltos em água, como em um jogo de sentimentos opostos de desprezo e prazer, amor e ódio.

Em um terceiro momento, no final do espetáculo, após a explosão de sentimentos, a personagem da atriz Samira está exausta e uma água escorre lentamente, somente pelo seu corpo. Ela deixa que chova sobre ela até que toda a sua angústia seja levada pela água. Agora a personagem está serena. O reencontro com a água a liberta, a faz retornar a sua essência, como se o ocorrido devolvesse à personagem o equilíbrio.

Por fim, a água cessa de jorrar sobre o painel. O conflito entre o casal se esvai, a personagem feminina está frágil e amparada nos braços do marido. Antes que o espetáculo encerre, uma luz colore a cena e a água do chão de vermelho, sugerindo a trégua da guerra entre o casal, o choro do útero, a morte, o fim.