10.29.2010

A Casa do Governador e Inspirações Deleuzianas e Renaisianas


(Foto: Filme O Ano Passado em Marienbad / Direção: Alain Resnais)
Este ano visitei a nova casa do Governador do estado de Minas Gerais. Fui à trabalho com a equipe da TV Câmara fazer uma reportagem na Cidade Administrativa. Mesmo com o agendamento prévio da visita foram solicitados na entrada diversos documentos, preenchida uma ficha de cadastro e só então autorizado o acesso. Ficamos rendidos durante quase uma hora debaixo de um sol escaldante para atender às exigências da burocracia.

Subimos de elevador, se não me falha a memória, até o quarto andar da comunicação. Ao entrar na “fortaleza” a mudança de temperatura foi nítida com o funcionamento do ar condicionado. O chão era coberto por tapetes felpudos, de um tom amarelo envelhecido, pouco chamativo. E as paredes de um branco infinito e asséptico. Nas mesas e cadeiras predominava o cinza. Nossa equipe foi recebida por duas atendentes. O ar estava seco e, mesmo com a sensação de que tudo por ali se encontrava habitado, aquela estrutura grandiosa por fora e por dentro era de um silêncio, uma organização, um vazio e um equilíbrio insuportáveis. A primeira pergunta que fiz para uma das simpáticas mocinhas foi: “Onde posso tomar água?”. Uma delas que estampava desde a nossa entrada um sorriso tenso disse: “Você pode seguir até o final deste corredor à direita, ou se preferir, deste outro à esquerda. Acompanhei o gestual e fala, sincronizados da moça, e notei que em nenhum dos dois lados indicados eu conseguia avistar o fim do corredor e muito menos o bebedouro. Meu olhar se perdeu na sucessão infinita de portas e paredes. Ela percebeu a minha aflição e esboçou um novo sorriso, dessa vez mais flexível. De - repente, de uma portinha escondida - um atalho quase imperceptível em meio aquele palácio concreto e incontestável - a moça saiu com três copos d’água frescos.

Enquanto bebíamos sedentos e esperávamos o assessor de imprensa, começamos a passear distraídos pelos longos corredores. A cada sala, mesa, computador, fomos aos poucos desvendando os funcionários da instituição. Chamou a minha atenção tanta polidez e comedimento em simplesmente estarem ali. Pareciam estátuas vivas, pessoas petrificadas, quase inertes, que se movimentavam o mínimo necessário para não passarem como que ausentes. Cada um no seu espaço milimetricamente planejado, instalados em cadeiras confortáveis com design próprio para a situação de trabalho. Mesmo assim, os “homens e mulheres de pedra” não pareciam confortáveis em seus assentos. Naquela tarde eu não havia encontrado “frestas” e “ventilação”, nem no exterior e nem no interior da obra do modernista Oscar Niemeyer.

Nas andanças por esse labirinto de objetos e “homens-estátua” fui me lembrando de “O Ano Passado em Marienbad”, filme do cineasta francês Alain Resnais, em parceria com um roteirista do Nouveau Roman (Novo Romance) , Robbe-Grillet. O filme começa exatamente com a descrição arquitetural de um palácio barroco que não se localiza em período e lugar discerníveis, apesar do nome do filme localizá-lo em tempo e espaço. No desenrolar percebemos que o ano passado pode ter ocorrido em qualquer tempo, inclusive no presente e no futuro, e Marienbad pode ser outro lugar, como Frederiksbad. Aos poucos os travellings precisos e ousados que são marca da direção renaisiana percorrem durante o prólogo um suntuoso palácio pleno de detalhes da ornamentação barroca e nos revelam o espaço por meio de um voice-over: “Salas silenciosas, nas quais os passos deste que avança são absorvidos por tapetes tão pesados, grossos que nenhum barulho de passo chega a sua própria orelha. Como se a própria orelha estivesse muito distante, muito distante do chão, do tapete, muito distante deste cenário pesado e vazio (...) labirinto de pedra, no qual eu avançava, uma vez mais, como a seu encontro”.

Portanto, o mundo físico dos objetos que se sucedem pelos corredores labirínticos da Cidade Administrativa da mesma forma estão presentes no palácio de “O Ano Passado em Marienbad”. É esse mundo físico nas duas ocasiões que vai suscitar a evocação da memória. Como sugere o roteirista Robbe-Grillet, “a memória é egocêntrica e necessita dos objetos (mundo físico) para evoluir. Ela atinge conceitos por meio de objetos e não pela consciência, que é enganosa. Memória e imaginação são suspeitas, pois são naturalmente ligadas a um idealismo (ou idealizações). Só o objeto pode ser a fonte da realidade. A realidade para ele (Robbe-Grillet) está no mundo físico”.

Na Cidade Administrativa, quando percorremos os caminhos, a memória atua com liberdade de ação e traz a sensação de reconstituição verdadeira do ambiente da instituição pública. Os objetos que ali estão permanecem, não serão mudados de lugar necessariamente. Pouco da estrutura é alterada e os mecanismos da lembrança não são ludibriados. O filósofo Deleuze vai além do conceito proposto por Grillet e apresenta a memória não somente como um lugar de referência, porém como uma estrutura pontual que pertence ao Plano da Organização. Ele introduz este conceito no livro “Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia”.

O Plano da Organização é para Deleuze um lugar de transcendência, evolução, analogia, seja porque assinala um termo eminente de um desenvolvimento, seja porque estabelece as relações proporcionais de estrutura e de encadeamento. Sendo assim, a memória é um mecanismo da mente para registrar, aprisionar para o não esquecimento. Ao caminhar contamos os objetos para criarmos referência, determinarmos territórios para não nos perdermos. Sobre esse aspecto, Ítalo Calvino nos apresenta no livro As Cidades Invisíveis , uma cidade memória chamada Zora, em que seus cidadãos só conseguem se orientar a partir das relações de afinidade e contraste entre objetos e paisagens evocados pela memória.

O mesmo se passa no percurso no interior da Cidade Administrativa. É possível contar por quantas salas e pessoas passamos, para em seguida, nos recônditos da memória, nos lembrarmos. Porém, a sensação ao assistir “O Ano Passado em Marienbad” é outra. No filme, um estranho (Giorgio Albertazzi) tenta convencer uma mulher casada (Delphine Seirig) a fugir com ele. O homem diz conhecê-la. Fala que foram amantes. Entretanto, parece difícil fazê-la lembrar de que tiveram um caso (ou que não tiveram) no ano passado, em Marienbad. Alain Resnais opta por contar esta história com uma narrativa que valoriza o cenário, o figurino e os objetos. Os próprios protagonistas estão dispostos no espaço como “coisas”, o que o roteirista Robbe-Grillet chamou de “chosisme”. Os personagens não possuem nome, se locomovem lentamente, com os corpos duros e pesados. Repentinamente param como se estivessem congelados no tempo, como elementos de extensão e composição da arquitetura do espaço. O que instiga Resnais e Grillet no início dos anos 60 é a experimentação de uma linguagem nova que desconstrói todos os paradigmas do cinema da “imagem-ação”, já em franca decadência na época.

Sendo assim, esses deslocamentos dos objetos propostos por Resnais e Grillet que enganam os artifícios de organização da memória, por várias vezes, situam “O Ano Passado em Marienbad” em um plano diferente do plano organizacional, do qual se vestem melhor os mecanismos de estruturação física da Cidade Administrativa. No filme, Alain Resnais e Robert Grillet acessam outro plano que Deleuze chama de Consistência. Este plano também conhecido como Plano de Composição é geométrico e não remete mais a um desenho mental, mas a um desenho abstrato.

Sendo assim, os objetos, único mecanismo que poderia nos dar dicas e acompanhar os acontecimentos em O Ano Passado em Marienbad flutuam, se deslocam, são impermanentes. Eles a cada instante da narrativa são desterritorializados. Dentro do palácio barroco há espelhos que criam dimensões, dentro de dimensões e somos levados a nos perder sempre em novas camadas de objeto, o que nos traz a ideia do cinema dentro do cinema, a narrativa dentro da narrativa. Tudo está em abismo, tudo cai em falso. A partir destes artifícios o cineasta apresenta no filme a discussão de duas principais questões do cinema novo moderno: a crise da narrativa e crise da verdade.

Para esclarecer a respeito da narrativa, Deleuze analisa no livro “A Imagem-Tempo” as diferenças entre o cinema da imagem em movimento e o cinema da imagem-tempo. Sobre o primeiro, o filósofo explica que as imagens promovem no espectador estímulos sensório-motores e criam a sensação de desenvolvimento, com princípio, meio e fim. Algo que resulta aparentemente orgânico, pois não há “atropelos” na condução linear. No segundo, a narrativa ganha acidentes e é definida por velocidades e lentidões. O movimento não é contínuo, mas estruturado em blocos visuais, óticos e sonoros, ora coincidentes, ora em descompasso. Esta diferença basicamente diz respeito à crise na narrativa. Com a chegada da modernidade e do novo contexto de transformações políticas e sociais não cabe mais no mundo a estrutura clássica do romance burguês que influenciou o cinema até as primeiras décadas do século XX.

Esta nova forma de narrar proposta em “O Ano Passado em Marienbad”, que acompanha o movimento de toda a geração de cineastas da Nouvelle Vague, na França do início dos anos 60, questiona também a aspiração da verdade no cinema, o que Deleuze vai chamar de Potência do Falso

Em O Ano passado em Marienbad o conceito de potência do falso permeia todo o filme. O narrador diz conhecer uma mulher que nega o fato. Neste instante ele é visto como um “falso pretendente”. Em outro bloco, temos dúvidas se ela mente. Além disso, o narrador ao tentar organizar fracassa. Ao evocar a memória e os fatos, inclusive objetos como uma fotografia que prova a existência do encontro do suposto casal, Resnais nos confunde no momento seguinte com a sugestão de que o homem nunca poderia tê-la conhecido, já que no passado ela estava morta.

Além disso, a cada seqüência do filme somos surpreendidos pela protagonista com um novo figurino, que não marca estilo de época e acaba por cair na atemporalidade. Esses e outros elementos impedem que a narrativa se estabeleça em seqüência cronológica e ordenada. Eles suscitam um conceito ampliado de narrativa, que é construída por blocos de sensação. Não há como construir uma história. Os objetos não sempre reterritorializados. O espectador está hipnotizado e preso no labirinto renaisiano. Como diria Santo Agostinho “existe um presente do futuro, um presente do presente e um presente do passado”. Cada imagem em “O Ano Passado em Marienbad” é presentificada, única, auto-referente.

Não sabemos o que de fato é verdadeiro e o que não é no filme de Alain Resnais e Robert Grillet. E isso talvez não importe já que na arte o falso pode ser visto como potência criadora. Admitir, porém, deslizes, fracassos e potências do falso numa instância de poder é que poderia soar provavelmente como algo inaceitável pela própria natureza da instituição. Para funcionar como tal ela precisa de credibilidade e, portanto, norteia-se, sobretudo, pelos princípios da exatidão, velocidade, precisão. Não há linhas de fuga. A Instituição pública transita em outra planitude. Ela é verídica, incontestável e habita o plano organizacional da visão dogmática. Caso contrário, não carregaria o nome Cidade Administrativa.

E assim essas camadas, esse planos da estrutura e consistência se diferenciam e coexistem. Segundo Deleuze “O plano de organização não pára de trabalhar sobre o plano de consistência, tentando sempre tapar as linhas de fuga, parar ou interromper os movimentos de desterritorialização, lastreá-los, reestratificá-los, reconstituir formas e sujeitos em profundidade. Inversamente o plano de consistência não para de se extrair do plano de organização , de levar partículas a fugirem para fora dos estratos de embaralhar as formas a golpe de velocidade ou lentidão, de quebrar as funções à força de agenciamentos, de microagenciamentos. (DELEUZE, p.60)



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